Sabe-se que o regime democrático não sobrevive em terra em que a liberdade não viceja. A nação que se pretenda democrática cuida de inserir em sua constituição, cláusulas de garantia das liberdades de seus cidadãos. Nenhuma nação democrática, no entanto, garante liberdades irrestritas. A contrapartida de toda a liberdade é a responsabilidade.
A constatação acima é do Procurador de Justiça de Minas Gerais, Márcio Luís Chila Freyesleben, e será a base para nossa reflexão. O objetivo, caro(a) leitor(a) é de nos trazer um breve panorama histórico-filosófico sobre a temática do Direito, e suas mudanças.
É de longa data a serventia do Direito como uma causa nobre, retirando as abstrações e impressões equivocadas sobre os direitos e deveres dos homens. Transformou em regra e postura jurídica o que estivera diluído em meio aos discursos elevados, mas sem aplicação e efetividade social, proporcionando resultados diante da realidade. Podemos traçar um panorama, desde as investigações filosóficas e políticas dos gregos, do decálogo de Moisés e a organização de princípios e preceitos teologais do judaísmo e do cristianismo, culminando na robusta sistematização jurídica de Roma. Assim temos o elo entre os pilares da humanidade, a saber: filosofia grega e fé judaico-cristã.
Para Pedro Henrique Alves, em matéria no Instituto Burke, “ os gregos racionalizaram as conceituações de justiça, política, falsidade, direitos, verdade, essência, ser, entre outros termos de difícil definição, que serviria mais tarde como arrimo para o Direito medieval e moderno. Os judeus e os cristãos, por sua vez, deram a noção de sacralidade e de imutabilidade de princípios que regem per se os indivíduos; verticalizaram as regras sociais que antes tendiam à mera expressão da razão filosófica e dos construtos positivos do império”.
Com o judaísmo e o cristianismo houve uma ligação entre a lei escrita e a divindade: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (São João 1,1). Posteriormente, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino iriam elaborar a doutrina das Leis Naturais a partir do jusnaturalismo cosmológico que já existia em sua forma inicial com os filósofos gregos. O Direito Romano serviu, nesse contexto, como estrutura que foi vestido com os princípios filosóficos e teológicos que ainda se encontravam dispersos. No império romano, dentro de sua conjuntura, o cristianismo aos poucos adentrou, realizando uma espécie de enculturação de regras e valores teologais. Mas é com a obra Cidade de Deus, escrita por Santo Agostinho que o ápice filosófico-jurídico no Direito adquiriu nova configuração.
Nesta obra, o bispo de Hipona elabora um tratado social e teológico separando a “cidade de Deus” da “cidade dos homens”. Com tal definição Agostinho separa as regras, esperanças e doutrinas teleológicas do cristianismo, das organizações sócio-políticas da Pólis; proporcionando distinção e independência a ambos: Cidade de Deus e Cidade dos Homens.
Contudo a partir da Renascença, o Direito, que antes tinha a missão de intérprete da realidade e reformador prudente das incertezas humanas que iam sendo reveladas pelo desenvolvimento da história, passa a ser mais um tentáculo da revolução social em voga, um instrumento de busca da perfeição social. Nas literaturas no início do século XVI e do século XVII: Utopia de Thomas Morus; Nova Atlantis de Francis Bacon, entre outras do mesmo teor, era levantado alguns ideais que procuravam inculcar na sociedade uma realidade perfeita como fruto de organizações jurídicas humanas — sem mais precisar se dispor de pressupostos eternos ou princípios teológicos.
No dizer de John Gray que bem definiu em uma frase a modernidade: “A ciência foi lançada contra a ciência e tornouse um canal para a magia” (GRAY, 2011, p. 11). São nestas circunstâncias que o Direito passou a ser a mágica, vaporizando na realidade certos utopismos (sociedade imaginária que possuiria qualidades altamente desejáveis ou quase perfeitas para os seus cidadãos), ao invés de ser organizador seguro e prático da realidade.
Aos poucos o Direito foi se desconectando de qualquer valor ou princípios transcendentes. E para finalizar, vale lembrar que apesar da mudança de visão durante um longo período da história não ter tido objetivo deliberado, a mudança das mentalidades, “ da sociedade moderna e pós-moderna, no entanto, foi planejada. O instrumento de sua implementação denomina-se, revolução”. (FREYESLEBEN, 2020. In: Globalismo e Ativismo Judicial)
Por fim, caminhando nesta esteira, não há necessidade de tomar as ruas, pois muitas mentes e tribunais já se encontram revolucionados.